A abordagem da fisiopatologia da LTA tem como ponto central o mecanismo da relação parasito-hospedeiro que estimula a resposta imune específica. No intestino dos insetos vetores, as formas promastigotas passam por um processo denominado metaciclogênese, que é o processo pelo qual estas formas deixam de se reproduzir e tornam-se infectantes (promastigotas metacíclicas). As formas reprodutivas, não infectantes (procíclicas), prendem-se à parede do tubo digestivo do inseto vetor. Durante a metaciclogênese, as promastigotas sofrem modificações bioquímicas em sua superfície, perdendo assim sua capacidade de adesão ao epitélio do intestino médio do flebótomo. Como resultado, as promastigotas metacíclicas destacam-se, migrando para a faringe e cavidade bucal, de onde elas são transmitidas ao hospedeiro vertebrado, durante o próximo repasto sanguíneo. Após a inoculação, as promastigotas precisam sobreviver aos mecanismos inatos de defesa do hospedeiro. As mudanças bioquímicas ocorridas durante a metaciclogênese conferem às promastigotas uma resistência aumentada à lise pelo complemento. Substâncias presentes na saliva dos flebotomíneos também favorecem a infecção. Quando as promastigotas são introduzidas na pele, encontram neste local algumas células do sistema imune (linfócitos T e B, macrófagos residentes, células de Langerhans, mastócitos), que formam um compartimento bastante específico denominado sistema imune da pele. Por um mecanismo ainda não totalmente esclarecido, envolvendo receptores e ligantes em ambas superfícies, o parasito se adere à superfície dos macrófagos e células de Langerhans passando para o meio intracelular por meio de um processo de fagocitose mediada por receptores, em que se transforma na forma amastigota, característica do parasitismo nos mamíferos. Aqueles que se localizam dentro das células de Langerhans são levados aos linfonodos de drenagem, que ao se infectarem sofrem modifi cações que possibilitam sua migração. No interior das células de drenagem, as partículas antigênicas do parasito serão apresentadas às células do sistema imune. Estas, uma vez estimuladas, se dirigem ao sítio da infecção, auxiliando na formação do processo inflamatório. Nos macrófagos, os parasitos internalizados ficam dentro de um vacúolo parasitóforo (fagolisossoma), que os separa do citoplasma celular. Esta organela deriva da fusão do fagossoma, resultante da fagocitose dos parasitos com os lisossomas, que contêm substâncias responsáveis pela destruição de microorganismos. Embora os macrófagos sejam células fagocitárias especializadas no combate a agentes infecciosos, as leishmânias desenvolverem mecanismos de defesa capazes de subverter sua capacidade microbicida, conseguindo sobreviver neste ambiente potencialmente tóxico e multiplicar-se até a ruptura da célula, quando são liberadas para infectar outros macrófagos, propagando a infecção. Este processo leva à liberação de partículas antigênicas que serão apresentadas ao sistema imune, gerando a resposta específi ca. Aquelas formas promastigotas que não forem internalizadas serão destruídas no meio extracelular pela resposta inata e as partículas antigênicas produzidas neste processo também poderão ser utilizadas pelas células apresentadoras de antígeno no processo de reconhecimento antigênico. É provavelmente neste momento que características como intensidade e qualidade da resposta imune são defi nidas, influenciando assim a evolução da doença para cura espontânea, formas autolimitadas ou formas progressivas. A localização das amastigotas no interior de macrófagos faz com que o controle da infecção seja dependente da resposta imune mediada por células. A principal célula efetora da eliminação das amastigotas é o próprio macrófago, após sua ativação por linfócitos T auxiliadores (helper). As células do sistema imune comunicam-se por meio da secreção de mediadores solúveis denominados citocinas. As citocinas produzidas por linfócitos recebem o nome de linfocinas. Linfócitos T ativam macrófagos, tornando-os capazes de destruir amastigotas, por meio da secreção da linfocina denominada interferon-gama (IFN-γ). Os mecanismos de eliminação das amastigotas pelos macrófagos ativados envolvem a síntese de intermediários tóxicos de oxigênio e nitrogênio, como o óxido nítrico. Na fi siopatogenia das leishmanioses, os macrófagos são ao mesmo tempo células hospedeiras, apresentadoras de antígeno para o sistema imune e efetoras para a destruição do parasito. As células T “helper” CD4+ têm uma função central no sistema imune, promovendo respos tas adaptativas adequadas a patógenos específicos. De acordo com as linfocinas que produzem após estimulação antigênica, estas células podem ser separadas em duas subpopulações:T “helper 1” (Th 1) e T “helper” 2 (Th 2). As células Th 1 produzem IFN-γ e são associadas à proteção contra os patógenos intracelulares, como as leishmânias, enquanto que as células Th 2 produzem interleucina (IL)-4, IL-5 e IL-10 e estão envolvidas nos processos alérgicos e na proteção contra agentes extracelulares. No caso das infecções por microrganismos intracelulares, a ativação das células Th 2 leva ao agravamento. Os inúmeros estudos realizados no modelo experimental da leishmaniose murina causada por L. major, espécie causadora de leishmaniose cutânea no Velho Mundo e que não ocorre no Brasil, foram fundamentais para o estabelecimento do chamado “paradigma Th 1/Th 2”, que tem servido como base para a compreensão da relação parasito-hospedeiro em diversas doenças infecciosas e parasitárias. Neste modelo foram defi nidos papéis protetores e nocivos para diversas citocinas. Alguns destes conceitos, mas não todos, foram confi rmados em estudos das leishmanioses humanas. O que já está bem estabelecido é que, para o controle da infecção, é necessária a predominância da resposta imune celular com características de tipo 1, envolvendo linfócitos CD4 e CD8 e citocinas como IL-12, IFN-γ, fator de necrose tumoral-alfa (TNF-α), linfotoxina e algumas quimiocinas produzidas por macrófagos. Esta resposta tem como resultado a ativação de macrófagos, tornando-os capazes de eliminar o parasito, controlando a infecção. Dentro desta perspectiva, a diminuição do número de parasitos, leva a uma redução do estímulo da resposta imune pelo menor aporte de antígenos. Com isto, a cicatrização se inicia através do controle do processo inflamatório
(morte de células efetoras não estimuladas), aumento da função de fibroblastos, com produção de fibrose e tecido de cicatrização. Mesmo com a diversidade de espécies de Leishmania envolvidas na LTA, a manifestação clínica da doença depende não apenas da espécie envolvida, mas também do estado imunológico do indivíduo infectado. Um espectro de formas clínicas pode se desenvolver na dependência das características da resposta imune mediada por células. No meio do espectro, a leishmaniose cutânea (LC) representa a manifestação clínica mais freqüente. Nela, as lesões são exclusivamente cutâneas e tendem à cicatrização. Mais freqüentemente, são únicas ou em pequeno número. Em casos mais raros, as lesões podem ser numerosas, caracterizando a forma denominada leishmaniose cutânea disseminada. As lesões apresentam aspectos variados e a infecção secundária bacteriana altera este aspecto tornando-as mais inflamadas, dolorosas e purulentas. Alguns indivíduos curam precocemente a lesão, às vezes sem procurar atendimento médico. Outros permanecem meses com a lesão em atividade e o processo de cicatrização mostra-se lento. Este fenômeno pode ser explicado pelo estabelecimento rápido ou tardio de uma resposta imune específica eficiente na eliminação do parasito. O processo de cura das lesões de LTA é hoje objeto de estudo de vários grupos de pesquisa. Na LC, a imunidade celular está preservada, o que pode ser verifi cado pela positividade ao teste cutâneo com leishmanina, Intradermorreação de Montenegro (IDRM) e de outros testes in vitro, tais como a proliferação celular e a produção de IFN-γ em culturas de células mononucleares de sangue periférico estimuladas com antígenos de Leishmania. Esta resposta celular específi ca bem modulada, mas com predominância de citocinas do tipo 1, se refl ete em tendência à cura espontânea e boa resposta ao tratamento, que se observa inclusive na leishmaniose cutânea disseminada. A LC é uma doença benigna e, na maioria dos casos, resolve-se após alguns meses, mesmo sem tratamento. Considera-se que algumas pessoas possam se infectar sem desenvolver doença, pois em áreas endêmicas podem ser encontrados indivíduos positivos ao teste de Montenegro, mas sem história de LTA e sem cicatrizes compatíveis. A LC pode ser causada por todas as espécies dermotrópicas de Leishmania, mas algumas características particulares têm sido atribuídas às diferentes espécies. Assim, as lesões causadas por L. (L.) amazonensis têm bordas mais infiltradas. Histologicamente, estas lesões se caracterizam por um denso infiltrado dérmico de macrófagos vacuolados contendo abundantes parasitos. Nas lesões causadas por espécies do subgênero Viannia, o infiltrado é mais discreto, com predominância de linfócitos e plasmócitos e escassez de macrófagos e parasitos. A partir da forma cutânea, quando a infecção não é controlada pelos mecanismos adaptativos da resposta imune celular, a doença pode evoluir para um dos dois extremos de maior gravidade do espectro: o pólo anérgico multiparasitário ou o pólo hiperérgico-pauciparasitário. Na LC, sabe-se que a incapacidade de montar uma resposta imune celular eficaz está
associada à evolução clínica e resposta terapêutica menos favoráveis. Em pacientes com a síndrome de imunodeficiência adquirida (aids), a LC pode apresentar quadros clínicos atípicos, tendência à dis seminação e má resposta aos esquemas quimioterápicos usuais. Em pacientes sem causas conhecidas de imunodeficiên cia a LC, pode evoluir para uma ausência de resposta celular específica (anergia)para antígenos de Leishmania, que caracteriza a rara leishmaniose cutânea difusa (LCD), o pólo anérgico-multiparasitário do espectro, no qual a anergia celular está associada à acentuada proliferação dos parasitos e à disseminação da infecção. No Brasil, está associada exclusivamente à infecção causada por L. (L.) amazonensis. Há evidências de que L. amazonensis tem uma capacidade particular de interferir negativamente em vários mecanismos imunológicos necessários para a geração de uma resposta imune efetiva. A maioria dos casos de LCD, origina-se de infecção adquirida na infância, o que sugere um papel para a imaturidade do sistema imune no desenvolvimento desta forma clínica. Na ausência de uma resposta imune celular efetiva contra o parasito, este se multiplica sem controle, aumentando o número de lesões e expandindo sua distribuição na superfície corporal. O teste cutâneo de Montenegro é caracteristicamente negativo, assim como os testes de proliferação celular e produção de IFN-γ em culturas de células mononucleares de sangue periférico estimuladas com antígenos de Leishmania. Apesar da ausência de respostas celulares específicas, os níveis de anticorpos anti-Leishmania circulantes são altos. Ocorre uma predominância da resposta do tipo secretório (produção de anticorpos), em detrimento da resposta celular. O perfil de citocinas da resposta imune nestes casos é predominantemente do tipo 2, com baixa produção de IFN-γ e níveis altos de IL-10. Macrófagos não ativados não entram em estado parasiticida e não eliminam a infecção. A resposta ao tratamento é ruim e isto provavelmente se deve à imunodeficiência específi ca. O parasito passa a ser encontrado em grande quantidade nas lesões e o processo inflamatório mostra-se desorganizado, não sendo capaz de controlar a infecção. Embora os pacientes apresentem redução signifi cativa das lesões durante a quimioterapia, as recidivas são praticamente inevitáveis. A LCD não deve ser confundida com a LC disseminada, pois esta ocorre em indivíduos capazes de montar uma resposta imune celular contra Leishmania e apresenta boa resposta terapêutica. O pólo oposto, hiperérgico-pauciparasitário, é representado pela leishmaniose mucosa (LM), que tem como agente etiológico principal a L. (V.) braziliensis, e se caracteriza imunologicamente pelo exagero das respostas celulares anti-Leishmania e pela escassez de parasitos. Do ponto de vista imunológico, a IDRM é fortemente positiva, com áreas de enduração cutânea significativamente superiores às observadas na LC, ocasionalmente com flictenas e/ou necrose. A resposta proliferativa e a produção de IFN-γ e TNF-α estimuladas por antígenos de Leishmania em culturas de células mononucleares de sangue periférico também são significativamente maiores do que as observadas na LC. Esta resposta exacerbada do tipo 1 promove então destruição de tecido onde houver depósito de partículas antigênicas. Isto é o que ocorre na chamada forma mucosa clássica. No entanto, vale ressaltar que, em alguns casos, o surgimento de lesões mucosas não se acompanha de exacerbação da resposta do tipo 1, como, por exemplo, em pacientes imunocomprometidos. Na LM, este exagero na produção das citocinas do tipo 1 associa-se a uma produção relativamente baixa de IL-10, uma citocina capaz de modular a resposta e inibir a ativação de macrófagos. Verifi cou-se que as células de pacientes com LM apresentam baixa capacidade de resposta a citocinas inibidoras da secreção de IFN-γ. Foi sugerido então que a incapacidade de promover uma modulação adequada da resposta do tipo 1 nos casos de LM possa estar envolvida na patogênese desta grave manifestação clínica. A resposta terapêutica da LM não é boa. Ainda que as lesões regridam ou mesmo desapareçam com os tratamentos convencionais, as recidivas são freqüentes. Embora a resposta imune que se desenvolve na LM não seja capaz de controlar a doença e muito provavelmente seja responsável pelas manifestações clínicas, ela é capaz de conter a multiplicação parasitária, e os parasitos são escassos nas lesões mucosas. A patogênese da LM continua sendo um mistério, embora alguns estudos tenham associado um risco aumentado a determinadas características genéticas. Quanto mais intensa a resposta de tipo 1, maior a efi ciência na eliminação do parasito. Quanto mais presente a resposta de tipo 2, ao contrário, maior será a sobrevivência doprotozoário. Esta dinâmica pode explicar porque o isolamento de parasitos é mais difícil em lesões antigas, já com substituição de tecido por fi brose (mesmo que ainda não vista na macroscopia) e em lesões com alto grau de destruição como nas formas mucosas. Nas lesões mais recentes, o parasito é mais facilmente isolado provavelmente devido a uma taxa de multiplicação maior que a de destruição. Por outro lado, nas formas da doença em que ocorre um predomínio da resposta do tipo 2 (LCD), o isolamento é mais facilmente obtido, devido ao intenso parasitismo. Vale a pena ressaltar, no entanto, o fato da efi ciência de isolamento ser tam bém infl uenciada pelas condições de coleta e manipulação do material e das condições de cultivo.A cura da leishmaniose não é estéril, tem sido possível isolar parasitos viáveis de cicatrizes de LTA em indivíduos cura dos há vários anos, fato este comprovado em estudos experimentais usando modelo animal. Este fenômeno poderia assim explicar o aparecimento de recidivas tardias como também o surgimento da doença em paci entes imunocomprometidos, como no caso da aids. A perda da eficiên cia da resposta imune levaria a uma quebra do equilíbrio entre parasito e hospedeiro, facilitando a multiplicação do protozoário e produzindo as lesões. É provável que a manutenção da resposta imune celular específica por longos períodos após a cura se deva à permanência destes parasitos latentes, no organismo do hospedeiro, um fenômeno referido como imunidade concomitante. Com base no exposto, podemos concluir que, para a cura do paciente, seja de for ma espontânea,seja após tratamento específi co, é necessário que a infecção tenha estimulado o sistema imune a estabelecer uma resposta celular de tipo 1 equilibrada. Na prática clínica, a ferramenta rotineiramen te utilizada para a avaliação da imunidade celular anti-Leishmania é a IDRM. Apesar da sua grande impor tância diagnóstica, deve ser lembrado que sua positividade não signifi ca doença em atividade. Signifi ca apenas que o indivíduo já se expôs a antígenos do parasito. Geralmente, esta exposição deve-se à infecção por Leishmania, porém sabe-se que repetidas aplicações do próprio IDRM também podem induzir uma imunossensibilização capaz de conferir positividade ao teste. A resposta imune celular que se desenvolve com a infecção é duradoura. Assim, o teste permanece positivo, vários anos após a cura clínica. O teste de Montenegro é positivo na grande maioria dos pacienes com LTA. Entretanto, em estágios iniciais da LC, é possível encontrar-se negativo, tornando-se positivo com a evolução da doença. É importante frisar o risco do estabelecimento de diagnóstico baseado apenas na IDRM positiva. Uma reação positiva não pode ser considerada como elemento sufi ciente para o diagnóstico em indivíduos moradores de área endêmica, já que pode não signifi car leishmaniose em atividade ou representar hipersensibilidade ao conservante, em especial, o thimerosal (merthiolate). A localização intracelular das formas amastigotas no hospedeiro mamífero determina que anticorpos sejam inefi cazes para o controle da infecção. Além de não terem infl uência no destino da infecção, os níveis de anticorpos circulantes são diretamente proporcionais à gravidade da doença e à atividade da infecção. Os títulos de anticorpos específicos são mais altos nas formas graves, multiparasitárias, como a LCD e a leishmaniose visceral. Embora os níveis de anticorpos específi cos na LM sejam mais baixos do que os encontrados na LCD, eles são superiores aos observados na LC. Os níveis de anticorpos tendem a ser baixos ou indetectáveis na LC não complicada. Considerando-se exclusivamente esta forma clínica, os níveis de anticorpos anti-Leishmania são mais altos nos casos com lesões múltiplas que nos com lesão única. Após a cura clínica, os títulos dos testes sorológicos tendem a cair rapidamente (em poucos meses).
Texto retirados diretamente de nosso Manual de Vigilância de Leishmaniose Tegumentar Americana do MINISTÉRIO DA SAUDE das p´gs. 36 a 41